sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sara Jona: apresentação do livro "Emoções e Abstracções"


VER e SENTIR A REALIDADE: a alma feminina em Emoções e Abstracções

Por Sara Jona

É como se essa poesia fosse habitada, necessariamente, por uma alma feminina, porém, sem estereótipos feministas” Ngomane: 2011.

O presente texto surge no âmbito do lançamento da obra Emoções e Abstracções – doravante EA, da autoria de Rinkel, pseudónimo de Márcia do Santos, escritora Moçambicana com outros dois livros publicados, nomeadamente: Almas Gémeas, em 1998 e Revelações, de 2006. A autora é membro da Associação de Escritores Moçambicanos e docente na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
A nova proposta de Rinkel coloca o leitor perante o desafio de reflectir sobre a Literatura de Autoria Feminina. Em Moçambique, naquilo que à mulher diz respeito e fora do âmbito literário, o que tem sido dado a discutir são questões ligadas ao feminismo, onde se destaca a luta de classes e a disputa por um papel social a ser desempenhado pela mulher ou a defesa daquela como forma de libertá-la do jugo do patriarcado e da fragilidade e subalternidade a que tem sido sujeita. Esses são assuntos de interesse social, por continuar a ser discutidos, até serem  resolvidos, mas não é sobre isso que a autora de Emoções e Abstracções escreve e esse facto encontra-se explicado na epígrafe ao presente texto.



A Literatura de Autoria Feminina alerta para uma visão do mundo no feminino (mentalidade e atitudes femininas), contrapostas a visão do mundo no masculino, no que diz respeito à diferenças ligadas ao sentido bio-psico-social do termo. Esta oposição é realizada através da voz que fala no texto, no tipo de linguagem utilizada e, no ponto de vista de como os fenómenos são apropriados e narrados. Vale recordar que, no que tange ao processo identitário, o corpo feminino pode albergar uma alma masculina e que se manifeste socialmente como masculina, ou o contrário, uma alma masculina ser portadora de uma mente feminina e as suas atitudes reflectirem essa condição psicológica. Isto quer dizer que a linguagem é sexuada e considerando esse facto, a Teoria Literária reserva, em alguns dos seus capítulos, estudos sobre a ficção no feminino.
A propósito desse tipo de estudos, refira-se um estudo de Magalhães (1987) que, ao analisar a [dimensão temporal na escrita feminina contemporânea na ficção portuguesa], concluiu que o tempo narrado por mulheres, num conjunto de obras que estudou, centra-se na relação intra muros que essas mulheres têm relativamente a sua existência. E essa condição, segundo a autora, faz com que elas construam os seus textos com referências ao passado, utilizando a memória e em direcção ao futuro, através do sonho ou do desejo; num presente restritivo que as incita. Quanto ao tempo vivido pelo homem, Magalhães advoga que, este decorre levando em linha de conta viagens reais e metonímicas no espaço e num presente vivido com mais intensidade que o passado e num futuro imediato e não utópico. Este estudo é revelador da diferença na maneira de viver, de formular ideias e a visão de mundo, entre mulheres e homens. De um modo geral, a obra de Rinkel traz também essas referências de uma vida interior marcada pelo passado – através daquilo que é recordado pelo sujeito poético dos seus textos, um presente desafiador e um futuro que se anseia estimulante.
Quanto à linguagem utilizada no texto, é de se referir que a obra é portadora de experiências de narrar de mulher realizada de forma simples, mas não banal e é reveladora de sensações e representações, na sua maioria, vividas por uma alma feminina. No entanto, refira-se que o facto de escrever sobre sensações e abstracções não é um exclusivo da mulher, já Alberto Caeiro (um dos heterónimos de Fernando Pessoa, em O Guardador de Rebanhos demonstrou que através do uso de linguagem abstracta e ligada o dia-a-dia era possível deixar-se as sensações fluírem e fazer-se poesia de reconhecida qualidade; como é o caso dos poemas que Rinkel nos apresenta.
Um exemplo sobre o que se tem vindo a referir, acerca do uso da linguagem que habita a alma feminina, é o caso da subtileza com que o sujeito poético faz referência a um momento de prazer  como o mencionado na pg. 31, cujo título do poema é Mais Turbo e Acção. Nele, encontra-se uma engenhosa descrição de um acto de masturbação, no qual uma mulher fala sobre a masturbação de outra. Cada leitor pode ler esse poema, de vagar e a deliciar-se da fabulosa narração. A linguagem utilizada é de uma perspicácia típica das mulheres quando falam sobre um assunto de alçada íntima em  público.
Ao propor discutir sobre a Escrita de Autoria Feminina, Rinkel centra a sua ficção em temas subjectivos, ou seja, em temas que revelam o modo singular como determinado indivíduo encara a realidade que o circunda, nomeadamente, temas autobiográficos, memorialistas, místicos, confissões, entre outros; num conjunto de textos marcados por um eu sensitivo, que se emociona, que indaga, que duvida, e critica o que vê e sente.
A obra foi escrita em homenagem à uma “provável” filha que se encontra a habitar uma dimensão não terrena. Provável, porque a dedicatória encontra-se entre aspas, ficando-se sem saber, nem a autoria da frase, nem se se trata de alguém que de facto existiu ou é alguém fictício. Mas na análise literária esse facto não é relevante. No entanto, permite afirmar, com propriedade, que alguns poemas constantes do livro e que remetam ao citado texto, têm marcas biográficas que podem ser encontradas nos poemas das pgs. 16 a 20, exemplificando:

Cedo Partiste

Cedo partiste…/Levaste contigo o teu humor,/para sempre./Aprendi que com a humildade, amor e ternura/conquistam-se montanhas/atravessam-se desertos/constroem-se pontes/ultrapassam-se glaciares/vencem-se profundidades…/Agora fazes falta/porque ensinaste como lutar pela vida/mas não ensinaste como deixar a vida/com honra e esplendor. (EA: 16 e 17)

Ou

Minha Filhinha I

Aquela figura magrinha e frágil/de olhos amendoados e/cabelos castanhos encaracolados/ sorriu para mim…/”gyanana gyango”/digo baixinho. (EA:18 e 19).


Ou ainda,

O poema Conheço, da pg. 20:

Eu conheço o teu andar/eu conheço o teu cansar/eu conheço o teu chorar/eu conheço o teu amanhecer/ eu conheço o teu correr/ conheço o teu ser/eu até conheço/ o que tu não conheces de ti.

A obra traz também marcas memorialistas, nos poemas Ares Paradisíacos, Guerras e Varedero, das pgs. 23, 24, e 36. Apenas um será transcrito, mas antes, deve-se realçar que os versos dessas páginas são constituídos por diferentes sentidos que recorrem a memória de algo vivido pelo sujeito poético:

Varedero

Abracei o mundo/ através das tuas límpidas e quentes águas/tuas areias finas e brancas são um constante convite/ao deleite caribenho/joquei-me em teu encantos/juntamente com Kalungano, Armando, Juvenal, Jaime e Sangare/peguei em minhas mãos a poesia universal/através de seus múltiplos idiomas e nacionalidades/ senti o mundo em La Habana/através de um festival de palavras. …(EA:36).

O texto em análise revela algumas confissões feitas pelo sujeito poético, é o caso dos poemas Perdida, da p.26; Tu És, pg. 28; Um Desastre Aconteceu, p 43 e Amar, pg. 27. Em Perdida, o sujeito confessa: “Perdida/Sozinha/Amedrontada/Abandonada/Sem destino/Sem forças para lutar”. (EA: 26)
Há também uma mística vivida por ele e que é partilhada com o leitor, através dos poemas O Mundo Colorido e Partilha, das pgs. 13 e 41. No primeiro poema, no lugar de pintar o seu mundo com o que existe de mais luxuoso e vistoso, como seria de se esperar em contexto comum, o sujeito poético pinta-o com cores da natureza. No segundo poema evidencia o desapego pelas coisas materiais.
Em Emoções e Abstracções, mesmo quando se trata de assuntos corriqueiros como a corrupção, a política ou a democracia, o sujeito poético desenvolve-os de forma que causa espanto, como se fosse a primeira vez que se ouve falar sobre eles. Em Literatura designa-se de estranhamento à essa técnica, que na óptica Aristótélica consiste em abordar um assunto já conhecido,  criando a percepção de se estar a falar em algo jamais visto e admirável. Rossbacher (1977)[1] designa essa estratégia como o que rompe com as barreiras da percepção automática sobre as coisas. Vejam-se os poemas das pgs. 50, 51, e 52: Os Protagonistas da Ganância, Corrupta Democracia e Sem Sistema.
Para melhor apreender o que se designa de causar estranhamento veja-se o exemplo do   poema Uma Nova Esperança, da pg. 53 que, abordando a questão da degradação de valores morais da uma juventude na sociedade em causa, que até poderia ser Moçambique; o sujeito poético fá-lo apelando a virtude da esperança. Acrescente-se a esta análise a ideia espelhada pelo poema Realidade Urbana, da pg.46, que tratando da falta de ética ambiental, característico de cidades como Maputo, onde só se vê “pedra sobre pedra” em detrimento de construção ou manutenção de espaços verdes;  a linguagem utilizada é desautomatizada.
Há muito mais o que se possa afirmar sobre a poesia de Rinkel, mas é importante  deixar-se um espaço para que outras leituras se realizem. A todos desejo  uma boa leitura e os meus  parabéns, Márcia Santos!


Referências

LAISSE, Sara. “VER, SENTIR E VESTIR A REALIDADE: o valor do adjectivo no poema O Guardador de Rebanhos”. Texto apresentado no Seminário Problemáticas em Estudos Portugueses. Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Janeiro de 2011.
MAGALHÃES, Isabel. O Tempo das Mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – casa da Moeda. 1987.
ROSSBACHER, Peter, Sklovskij´s concept of ostranenie and Aristotle´s admiration, Vol. 92, No. 5, Compartive Literature (Dec. 1977), pp. 1038-1043, The Johns Hopkins University Press, http://www.jstor.org/stable/2906892, Accessed: 05/03/2009 10:53.
SANTOS, Márcia. Emoções e Abstracções. Maputo: FUNDAC. 2011.



[1] Retomado de Laisse 2010.

1 comentário:

  1. Olá, inclui o seu livro no meu blog www.literaturasafrikanas.blogspot.com por ocasião do dia internacional da poesia.
    Parabéns e muita força para continuar
    Abraços

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